Fallen Angel chronicles.

A chuva é tão forte que poucas pessoas se aventuram a andar pelas ruas. Eventualmente, o homem vestido de preto, via através da janela alguma pessoa passar correndo fugindo do que parecia um dilúvio de dimensões bíblicas. Com a cabeça curvada a frente, a testa encostada na vidraça da janela, os olhos abertos, mas a mente tão distante... cenas de um outro mundo e época sendo vistas e revividas...

_ Ariel... - murmurou.

...

Os campos verdejantes de Paradísia sempre foi o lugar preferido dela, ele sabia. Havia acabado de voltar de uma missão, onde quase todos acreditaram que ele falharia, mas ela o havia feito prometer que voltaria. Caminhou durante um bom tempo, apreciou novamente tudo o aquilo que estivera bem perto de perder. Quando a viu vir correndo em sua direção, o cabelo ruivo esvoaçante, segurando a barra do vestido com as mãos, soube que nunca nada o impediria de voltar para ela...

Ariel abriu um sorriso imenso ao se jogar nos braços dele. Ambos foram ao chão e no primeiro momento seus lábios ficaram tão próximos que ambos coraram um pouco. Caído ao chão, sentindo a grama nas costas e o corpo dela junto ao seu, teve a impressão de que os cabelos dela, que caia a volta da sua face e bloqueava toda a sua visão, deixando a mostra apenas o sorriso e os olhos dela, pareceu-lhe um véu que os separava de todo o resto, como se apenas os dois fossem tudo de mais importante no mundo. Ela deitou a cabeça ao peito dele e sentiu-se segura mais uma vez, o que não acontecia desde a ida dele. Com a mão esquerda ele a enlaçou e com a direita acariciava seu cabelo.

_ Todos acharam que você falharia, Haziel. Eu achei que nunca mais o veria... - ela falou quebrando o silêncio entre eles.

_ Eu entendo, mas agora está tudo bem, nunca mais vamos nos separar, eu prometo.- Haziel olhava o céu de Paradísia, ainda acariciava os cabelos dela, não sabia que um dia quebraria a promessa que havia feito. Estava feliz por estar de volta e com ela.

_ O Inferno é tão ruim como eles dizem?- ela perguntou.

Haziel lembrou-se dos gritos dos condenados. Viu novamente o céu em chamas, as montanhas que pareciam vulcões expelindo sangue. Os humanos acorrentados implorando por ajuda...

_ Lá só existe dor. - sua voz saiu baixa, parecia não querer falar muito sobre o assunto. Haziel quis nunca ter estado no Inferno, sabia que nunca ia conseguir esquecer tudo o que viu por lá...

...

Abriu os olhos. Um trovão singrou pelos céus, seguido ao estouro ensurdecedor e um clarão. Haziel ergueu uma das mãos e tocou no vidro da janela. Seu dedo traçou algumas linhas no vidro embaçado. Deu dois passos para trás e fitou a palavra que havia escrito. “ Ariel.”

Deu as costas para a janela, assim tentando fazer o mesmo com o passado. Estava decido, não havia mais o que fazer, não adianta lamentar.

Caminhou pelo quarto. As bonecas sentadas nas prateleiras de madeira pareciam sorrir para ele, talvez elas soubessem da natureza de suas intenções...

Chegou até a cama onde a menina dormia um sono irrequieto. Haziel se inclinou e tocou com ambas as mãos o cobertor para melhor ajeitá-lo ao seu corpo.

_ Você é um anjo? - a menina perguntou. Haziel soltou o cobertor e pretendia sumir, mas notou que ela ainda dormia. Talvez estivesse sonhando... Ele pegou o cobertor novamente e o puxou para cima. Deu a volta na cama e se sentou numa pequena poltrona. Virou-se para a menina.

_ Você é o anjo. - sussurrou.

Recostou as costas na poltrona. Abaixou um pouco a cabeça, não havia mais nada a fazer além de esperar.

Haziel sentiu a presença dos outros anjos. Num esforço maior de sua mente descobriu se tratar apenas de dois de seus irmãos. Começara os passos para sua queda.

Não levantou a cabeça para olhá-los, mas soube que já se encontravam dentro do quarto. Ouviu os passos dos dois ao atravessarem a porta como fantasmas. Um raio explodiu lá fora e o relâmpago iluminou toda a sala por uma fração de segundo. Haziel permaneceu imóvel.

Ouviu quando um deles se aproximou da cama da menina, o outro vinha em sua direção.

_ Vão embora. Eu não vou permitir que toquem num fio de cabelo dela, por favor, não me forcem a destruí-los.- Diz Haziel, mantendo ainda os olhos fitos no chão.

_ Irmão Haziel, eu não o compreendo... A menina é uma aberração, filha de um de nosso irmãos traidores e ainda existe a possibilidade de que ela seja a criança da profana profecia. Por favor, irmão Haziel, deixe-nos cumprir a nossa missão. - Alemiel disse. Manteve sua mão em posição para invocar a espada.

Enquanto Alemiel falava, Uziel estava imóvel, apenas seus olhos se moviam, iam de Haziel para a menina na cama. Sua mão moveu-se fazendo o gesto de invocação da arma. Haziel o sentiu.

Haziel levantou a cabeça e levou apenas dois segundos para que sua espada trespassasse o peito de Uziel. Ele ficou imóvel, olhou nos olhos de Uziel e este parecia indagar sobre o que havia acontecido. Haziel retirou a lâmina de sua espada e viu o corpo de Uziel desaparecer no ar. Quando ia virar-se para encarar Alemiel, sentiu a lâmina fria atravessar seu peito. Alemiel moveu-se rápido e fincou sua espada nas costas de Haziel até que ela irrompe-se do outro lado. Haziel virou-se velozmente com a espada em punho. A cabeça de Almiel desapareceu antes de tocar o solo, e junto também o seu corpo.

Haziel levou a mão ao peito e deu uma olhada na menina, ela dormia alheia a batalha que aconteceu aos seus pés. Ele saiu do quarto. Como um espírito ele foi atravessando as paredes até chegar num beco deserto. Seu peito parecia em chamas, tamanha a dor que sentia.

Sentiu a presença de um outro anjo...

Olhou para frente e a viu. Ariel vestia um casaco simples de cor negra e uma calça vermelha. Seus longos cabelos ruivos estavam molhados por causa da chuva. Ela não olhava na direção de Haziel, encostada num poste, fitava a parede. Haziel deu mais alguns passos na direção dela e então caiu de joelhos ao chão.

_ Por que? - a voz dela saiu com mais fúria do que ela desejou demonstrar.

_ A menina... - a dor no peito era tão aguda que Haziel mal conseguia falar. _ Ela é filha de Gabriel.

Tudo o que Haziel havia aprendido, todas as lições de poderes e armas. Tudo o que ele é, ele devia a Gabriel que sempre foi mais do que um irmão...

_ Você sempre foi o melhor de todos nós. Mas agora você abdicou de tudo e de mim, tudo isso por causa de uma aberração híbrida. - Ariel não conseguiu impedir as lágrimas, no entanto, elas ficaram invisíveis, mesclando-se aos pingos de chuva que lhe caem pela face. _ Eu não o perdôo, Haziel. Eu não o perdôo por ter destruído seus próprios irmãos. Eu não o perdôo por ter quebrado sua promessa. - Ela o encarou e em seus olhos havia uma grande dor.

Haziel ainda de joelhos no chão a olhou.

_ Eu queria estar com você nos campos verdejantes mais uma vez... - olhou para o céu. _ Faça o que tem que fazer, Ariel, porque eu fiz o que achei que tinha de fazer.

Ariel caminhou até ele. Deu a volta sem conseguir olhá-lo nos olhos. Parou atrás dele e pôs a mão direita em sua cabeça.

_ A aberração que você salvou talvez tenha o dom de abrir portais para outros planos. Se os demônios descobrirem-na vão poder até mesmo invadir Paradísia, ou quem sabe trazer para este plano os seres de Infernun ou até mesmo Tenebras. Acha uma atrocidade assim tão grande a morte dela em prol de tudo o que existe? Eu sempre o vi como alguém de visão, Haziel, mas agora demonstra pensar pequeno, como os humanos o fazem.

_ Ariel, apenas lhe peço que me permita ficar aqui na Terra. Não posso permitir que toquem na menina. Por favor, faça logo. - a voz de Haziel saiu entrecortada por alguns suspiros de dor.

_ Revela-te. - disse Ariel em voz alta.

As asas de Haziel brotaram de suas costas. A extensão das asas do Arcanjo são tão grandes que tocou as paredes de ambos os lados do beco.

_ Não tem o direito de pedir-me nada, Haziel. - Ela tocou com suas mãos as asas dele. _ Traiu vossos irmãos. Traiu seu povo, traindo assim aos próprios desígnios do Demiurge. Condeno-o a ser um pária entre os teus. Anjo caído, teu lugar é entre os traidores, demônios e condenados. Teu lugar é no INFERNO. - bradou Ariel, dando ênfase a última palavra. Em seguida arrancou as duas asas de Haziel num único golpe de ambas as suas mãos.

Haziel gritou tão alto que todas as vidraças em um raio de dois quilômetros explodiram. Alarmes de carros foram disparados, cães latiram e um outro raio singrou pelas nuvens, seguido de uma explosão onde pareceu que o céu desabaria.

Ariel se afastou e viu o círculo de fogo se formar ao redor de Haziel. Por um instante teve vontade de saltar lá e abraça-lo. Por um instante sentiu vontade desfazer todo o ritual e levá-lo, mesmo que a força, para Paradísia, mas sabia que era tarde demais.

Haziel viu as chamas ao seu redor. E pensou na menina. - Ela está perdida agora – Não se preocupou consigo.

_ Ariel! - gritou em desespero. _ Por favor, não permita que façam mal a ela.

Ariel sentiu uma raiva imensa. - Mesmo diante da porta para o Inferno é somente com a aberração que ele se preocupa, mas e comigo? Eu acabei de condenar o meu coração ao Inferno, e quem se preocupa comigo? - Ela foi até próximo das chamas.

_ A única coisa que posso lhe prometer é que ela não morrerá pelas minhas mãos. Mas não lhe devo nenhum favor, por tanto, pode ser que eu mude de idéia...

Um estrondo se fez abaixo de Haziel. O ritual estava terminado. Haziel olhou nos olhos de Ariel. Ambos fitaram-se com dor e pesar nos olhos, corações partidos e almas despedaçadas.

Então em um clarão as chamas sumiram e com elas Haziel. Ariel fitou o lugar onde Haziel estava há pouco, ajoelhou-se chorou.

Haziel estava em um túnel formado de chamas. Nas suas costas, no local onde estavam suas asas, agora só havia dor. E em sua alma uma mancha negra de pesar e lamentações.